quinta-feira, 6 de maio de 2010

Comentário hermenêutico de Hebreus 6.4-8 - A salvação pode ser perdida?


Introdução.

Desde o seu nascimento a Igreja tem sido alvo de grandes perseguições, porém sempre saindo delas de forma vitoriosa. As grandes dificuldades as quais tem passado em todos os tempos, sempre tem feito a noiva do cordeiro levantar-ser com mais força, entretanto, os grandes embates inimigos não tem sido os das perseguições físicas, pois elas forjam heróis, envergonhando ainda mais o arraial inimigo, e sim um perito trabalho de distorção da palavra de Deus, responsável pela divisão da seara do Mestre e o soerguimento das mais diversas bandeiras denominacionais.

Hebreus 6.4-8 tem sido usado desde muito como uma munição a fortalecer o arsenal inimigo contra a doutrina Bíblica da soberania de Deus, acentuando a crença de que o homem é responsável e mantenedor da sua salvação.

Nesse trabalho, buscar-se-á elucidar as dificuldades apresentadas pelo texto, bem como harmonizá-lo com as demais Escrituras. O texto será traduzido do grego, buscando-se assim a essência daquilo que o escritor quis transmitir. Serão envidados esforços no sentido de compreender a questão da impossibilidade do arrependimento nos versículos em questão. Por fim, será abordada a questão da procedência e manutenção da salvação. Que O Deus todo poderoso acrescente mais da sua graça aos seus humildes servos, a fim de que continuem buscando conhecer a sua vontade e trabalharem para sua glória.


Tradução de Hebreus 6.4-8.


4 “(É) impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados e desfrutado da dádiva celeste, sendo feitos companheiros através do Espírito Santo. 5 Tendo experienciado a boa palavra (palavra falada) de Deus e os poderes da era porvir, 6 e caído, de novo serem renovados para uma mudança de mentalidade, pois recrucificam o filho de Deus e o expõe á vergonha. 7 A terra pois, que bebe a chuva que frequentemente vem sobre ela e faz germinar vegetação apta para aqueles por quem é cultivada, torna-se participante da benção (bem aventurança) de Deus. 8 Mas produzindo espinhos e abrolhos, é reprovada e está no caminho da maldição, cujo destino final é a queima”.1

Hebreus 6.4- 6 é um trecho que não pode ser tomado como uma interpretação de que o Cristão está sujeito a perder a salvação após tê-la recebido, pois tal proposição traz consigo sérias implicações de cunho hermenêutico e exegético como:

  1. Se alguém servir a Jesus e posteriormente “desviar-se” da fé, não haverá possibilidade de arrependimento e estará invariável e eternamente perdido.

  2. Por esse prisma, a salvação deixa de ser um dom gratuito para tornar-se uma conquista meritória, cuja responsabilidade por sua manutenção é total e inexoravelmente humana, consequentemente, passível de ser perdida.


  3. Seguindo essa linha interpretativa, o crente fraco não poderá encontrar ensejo de salvação, já que vez por outra fracassa na fé, não havendo assim chance de uma suposta comunhão que o conduza ao nível de fé desejável.


A possibilidade de arrependimento.


Se o texto estivesse falando, que mesmo depois de se conhecer o Evangelho, ter chegado a entender o plano salvífico, desfrutado das bênçãos da comunhão cristã, e depois por algum motivo “desviar-se” se perderia a salvação, seria aberto um precedente de consequências no mínimo desastrosas. Isso implicaria na dedução lógica, que após alguém ter conhecido a verdade e depois tê-la abandonado, não teria mais a possibilidade de arrependimento.

Um dos maiores exemplos neotestamentário da possibilidade de arrependimento pode ser observado na figura do apóstolo Pedro. Negou não só ser discípulo de Jesus, como até mesmo conhecê-lo. (Mt.26.69-75) - Vale salientar que todos os outros discípulos também abandonaram o mestre - Pedro, porém, foi sensível à voz de Deus, quando do convite ao retorno à comunhão (Mc.16.7), confessando diante dos companheiros sua fé e amor ao Senhor (Jo.21.15-17).

Na epístola a Timóteo, Paulo fala claramente da possibilidade daquele Cristão que teve seus sentidos embotados pelo engano do pecado, e “desviou-se” da verdade, poder, outrossim, se arrepender (II Tm.2.25,26) retornando à verdade apostólica. Na sua homilia aos Coríntios, Paulo lembra uma forte exortação que lhes dirigira, todavia, explicita que tal atitude trouxe arrependimento da parte de Deus conduzindo-os à vida (II Co.7.9,10).

Outro exemplo encontra-se na repreensão feita à Laodicéia: “Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, Zeloso e arrepende-te” (Ap.3.19). Muito embora esse trecho, sobretudo o versículo 20, seja usado comumente para o evangelismo de descrentes, sabe-se ser essa aplicação deficitária e equivocada, pois a palavra é dirigida à Igreja de Laodicéia, uma das sete Igrejas da Ásia (Ap.1.4). A chamada ao arrependimento é feita “a crentes desviados” da fé genuína, a despeito de serem Cristãos professos.

Logo se pode observar a interpretação dada ao texto de Hebreus 6, abrindo precedente para a possibilidade da perda da salvação para aquele uma vez salvo, ser incoerente com a doutrina bíblica da salvação, pois se assim fora, não haveria chance de arrependimento para nenhum Cristão que de algum modo tenha se afastado por algum tempo da sua fé, sendo vedado os céus a todos os servos de Deus em todos os tempos que fracassaram. Estariam excluídos dessa relação: Jonas, Davi, Moisés, Elias, Pedro... E uma lista infindável de personagens que as sagradas letras afirmam terem sido homens dos quais o mundo não era digno (Hb.11.38). A salvação bíblica, todavia, é gratuita (Ef.2.8) e irrevogável (Jo.10.27,28) como todo dom Divino (Rm.11.29).


A impossibilidade do arrependimento.

[...] É impossível outra vez renová-los para o arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o filho de Deus e expondo-o à ignomínia” (Hb.6.6). Taxativamente é afirmada aqui a impossibilidade de renovação dos caídos. Não há, conforme esse versículo, nenhuma possibilidade do infrator ser reerguido por quem quer que seja. O texto grego fala da impossibilidade de se mudar a “disposição mental” do desviado, pois o termo “caíram denota um arremessar-se para fora (parapesountás), este verbo está no aoristo ativo apontando para uma ação simples.
Esse verbo é encontrado apenas nesse versículo em todo o novo testamento, cuja raiz significa “cair para o lado”, dando a entender o desvio de um padrão ou caminho certo.2

O cerne da questão se encontra na impossibilidade da renovação da fé daqueles que se desviaram do padrão ou caminho certo: “É impossível [...] serem renovados para uma mudança de mentalidade”; para em seguida notar-se claramente a conexão com o vocábulo “caíram” - transmitindo a ideia de uma ação deliberada - “estão crucificando para si mesmos o filho de Deus e o expondo a ignomínia”, pois quando o texto grego axiomaticamente declara: “recrucificam” a Jesus e o expõe à vergonha, está, portanto, apontando para a ideia de alguém que abandonou a fé, e fez-se contrário a Cristo,3 a ponto de tornar-se avesso a sua pessoa e doutrina, de modo similar aos que rejeitaram ao Senhor, o prenderam, aviltaram de todas as formas, inclusive despindo-o publicamente, e por fim o crucificaram (Mt.27.27-31, Lc.23.11 e Jo.19. 2,3).

Parece muito patente que o propósito do escritor de Hebreus é falar do perigo da apostasia. É pertinente observar que em nenhum momento do texto ele se referiu a alguém que experimentou a salvação e depois a perdeu, e sim aqueles que experimentaram uma iluminação e algumas das benesses divinas e depois apostataram. Outro fator importante é quando está sendo finalizada a perícope, há uma analogia muito esclarecedora no que concerne a mensagem que se deseja transmitir, pois no versículo sete é dito que a terra que, beneficiada pela chuva, responde positivamente com bons frutos, receberá indubitavelmente a bem aventurança da parte de Deus.

Tal analogia lembra as palavras ditas por Jesus: “Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada no fogo, assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis” (Mt.7.19,20). Isso aclara a premissa de que só se pode dar fruto segundo a sua espécie “[...] não se colhem figos de espinheiro, nem dos abrolhos se vindimam uvas.” (Lc. 6.44). Seguindo tal pensamento, conclui-se que só uma terra boa dará bons frutos. De modo lógico, se chegará à conclusão que só mesmo uma terra má produzirá espinhos e abrolhos, sendo isso uma simples manifestação da sua natureza, cujo destino final segundo a afirmação de Hebreus, é ser queimada.


A salvação, sua procedência e manutenção.

A salvação Bíblica tem variadas ênfases, mas de modo objetivo, sobretudo no Novo Testamento, fala do livramento da ira divina que será derramada sobre o pecador impenitente (I Tss.1.10, At.17.31, Jo.3.18). A Bíblia fala de salvação no sentido passado, presente e futuro. O verbo salvar surge nas escrituras gregas nos mais diversos tempos verbais; demonstrando que: os Cristãos foram salvos de forma pré-ordenada, sob decreto Divino, e ainda antes da fundação do mundo (Ef. 1.4), estavam sendo salvos pelo operar de Deus na História (Gl 4.4), são salvos por estarem justificados diante de Deus através do sacrifício do Calvário (Rm.3.24,8.1), estão sendo salvos por intermédio da obra santificadora contínua de Deus, a qual santifica os seus (I Tss.4.3,Ef.1.4), e serão salvos no tempo da consumação de todas as coisas4.

Em todos esses prismas observa-se que a obra da salvação é toda de Deus: “... Ao Senhor pertence a salvação”. (Jn. 2.9). Com base nessa assertiva, pode-se analisar as bases paulinas em Efésios 2. 8, 9:” porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isso não vem de vós; é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie”. O homem é salvo unicamente pelo favor divino, cuja nomenclatura é graça, donde se depreende ser essa uma consecução unicamente Divina. Parte de Deus - é dele o plano e a ação- o instrumento utilizado é a fé do pecador. A salvação aqui é considerada um dom, ou seja, um presente, uma dádiva. Não pode vir de nada que o homem tenha em si mesmo ou possa alegar fazer, pois não tem autonomia para isso devido o pecado: “Como está escrito: Não há justo, nem um sequer[...], todos se extraviaram, á uma se fizeram inúteis: não há quem faça o bem, não há nenhum sequer.”(Rm. 3.10,12).

Ao afirmar a incapacidade humana para conseguir a salvação por seu próprio intermédio ou esforço, as Escrituras indicam o caminho salvífico á humanidade perdida: “Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus”. (Rm. 3.24). É demonstrado ser só Jesus o remédio para a humanidade destituída da sua glória e carente da sua graça (Rm. 3.23). Foulkes ao comentar “[... ]e isso não vem de vós; é dom de Deus... de Efésio2.8 diz:

[...] o que o apóstolo quer dizer é que toda iniciativa e toda atitude no sentido de tornar acessível ao homem esta salvação pertencem a Deus. “De Deus é o dom” é a tradução que melhor mostra a ênfase da disposição das palavras em grego. “Um homem que fique abandonado por Deus, cai em total desesperança. É a voz de Deus que acorda, que desperta, que leva o homem a pensar e inquirir; é o poder de Deus que fornece forças para agir;é o mesmo poder que proporciona satisfação à necessidade de uma nova vida”.5


Depreende-se de tal proposição a soberana vontade de Deus, Rm. 9.15, fazendo tudo o que lhe apraz, conforme o beneplácito da sua vontade Ef.1.5. “Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”. Fp. 2.13. Só mesmo sendo chamado e escolhido por Deus é que o homem poderá resistir aos duros embates contra o pecado: “Não fostes vós que escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos designei para que vades e deis frutos...” (Jo. 15.16). “Eu sou a videira, vós os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer”. (Jo.15.5). Mesmo o permanecer em Cristo requer uma eleição. Na sua oração sacerdotal Jesus justificou a perda (saída) de Judas: “... Protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura” (Jo.17.12). Noutro lugar afirma: “... sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz, a ti” (Rm.11.18).

Aos Filipenses, Paulo ratifica a questão da consciência que o Cristão deve ter da obra salvífica de Deus em sua vida: “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (Fp.1.6). Nesse texto, o apóstolo parece aludir as obras feitas por Deus, e de modo específico, a obra da criação, a qual tem seu clímax na criação do homem e no descanso divino. Já que tudo o que Deus iniciou, de forma perfeita executou até o fim, para o louvor da sua glória.
Considerações finais.

Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus” (Mt. 22.29). Esse versículo parece se aplicar muito bem ao contexto no qual a Igreja se encontra hoje, eivada de pensamentos humanistas, buscando explicações estribada em seu próprio entendimento, (Pv.3.5), e não no conselho do Senhor (Is.30.1). Vê-se o reflexo disso na teologia gritada de cima dos púlpitos e nos meios de comunicações mais diversos. Dando impressão aos incautos, que tal palavra é a própria voz de Deus, quando ao contrário, estão ouvindo a mesma canção ouvida na era das trevas da Igreja pré-reforma; um som incerto6, ao qual um ouvido apurado pelo Espírito Santo não dará atenção.

Dentre os ensinamentos deturpados ao longo dos séculos, sem dúvida, a salvação pela graça mediante a fé, e a manutenção da mesma, garantida pelo Senhor, tem sido inequivocamente a mais atacada, contraditada e solapada por mestres inspirados pela corte do inimigo, que busca subtrair do homem a certeza da salvação e de Deus sua glória. Textos como esse de Hebreus, são usados ainda que de forma velada, para pôr no homem a responsabilidade e a consecução da sua salvação, ultrajando assim o Espírito da graça (Hb.10.29).

É Gratificante após um estudo sério como esse, observar que as falácias dos homens são lançadas por terra através de uma análise hermenêutica e exegética correta, sob a iluminação Daquele que vela por Sua palavra. A Ele pois, toda glória. 
                     Pr. Wanderley Nunes. 




1Tradução do texto grego, W.Nunes.

2Guthrie, Donald, A carta aos Hebreus, p.135.

3No caso da igreja hebraica, um retornar ao judaísmo, com suas leis, sacrifícios e um sacerdote intercessor, contrariando a salvação pela graça, o sacrifício de Cristo e o seu sacerdócio exclusivo e eterno. (Hb. 2. 1-3, Hb.10. 28-29).

4.Sproul, R. Cl, 2º Caderno Verdades Essenciais da Fé Cristã –. Editora Cultura Cristã. http://www.teuministerio.com.br

5Foulkes,Francis,Efésios introdução e comentário,p.64,65.

6I Co. 14.8